Morador do pantanal, o poeta Manoel de Barros encontrou enredo para sua obra justamente onde não havia nada. A monotonia e o isolamento daquele ambiente criaram nos moradores a necessidade de inventar histórias. Manoel aprendeu com aqueles ‘mentirosos’ e criou sua própria fantasia em versos geniais apreciados pelas fãs da poesia. Ele dizia que seus versinhos aumentavam o mundo. De fato! “Só dez por cento do que eu escrevo é mentira…o resto é invenção”, sentenciou o poeta em uma das poucas entrevista que concedeu.
Essa mesma inquietação para aumentar o mundo é característica de Alexandra Pericão. A professora e contadora de histórias do Instituto Mpumalanga e da Caravana das Artes gosta de enfeitar enredos, dar tom de ficção aos acontecimentos cotidianos e criar um universo mais rico de detalhes…de alegria.
Alexandra interpreta história no Sarau Caravana.
A literatura cheia de fantasia dos contos africanos foi de grande influência na infância de Alexandra. Ela gostava de ouvir os pais e também os avós maternos – portugueses que moraram em Moçambique; a mãe de Alexandra nasceu no continente africano. O pai de Alexandra gostava das histórias de reis e imperadores. Tantos personagens, aventuras e narrativas diferentes foram entrando em efervescência na cabeça da menina, ou melhor, ‘no seu liquidificador’. “Aí entrou no meu ‘liquidificador pessoal’ e foi se transformando em outras narrativas”, explicou.
Da história oral para os livros, os olhos de Alexandra Pericão se apaixonaram pela narrativa. Logo, viu a necessidade de reproduzi-las, cheia de talento teatral. Curioso! Os olhos apaixonados de Pericão hoje transmitem esse amor. É de se notar pela plateia inerte, de olhos vidrados, deixando a imaginação se movimentar enquanto as pupilas permanecem imóveis. A história vai entrando pelo olhar.
Confira a entrevista:
Instituto Mpumalanga: Qual a importância de contar histórias para uma criança?
Alexandra Pericão: Quando contamos uma história a uma criança lhe abrimos um portal para um lugar muito especial: um lugar onde a imaginação reina soberana. E esta rainha, a imaginação, é tão generosa que, mesmo em histórias cujos enredos retratem momentos do cotidiano infantil do ouvinte, ela se põe a funcionar livremente sem medo de represálias. Se os enredos são recheados de cenários, seres e ações fantásticas, a imaginação se põe a inchar infinitamente, alargando as possibilidades da linguagem, das percepções temporais e espaciais e, o que acho mais incrível, a criança vai adquirindo e construindo o sentido metafórico do que ouve em confronto com o que vive (ou ainda vai experienciar na sua vida). Também é pela tradição oral das histórias de seu povo que a criança vai firmando sua identidade sociocultural, seu sentimento de pertencimento e, de outro lado, ao ouvir histórias de outros povos, vai desenvolvendo o respeito e a tolerância por outras culturas.
IM: Como a imaginação na infância pode produzir adultos mais criativos?
Alexandra Pericão: Certamente, uma pessoa que teve sua vida entrelaçada com fazeres artísticos durante a infância terá chance maior de vir a se tornar um adulto criativo. Falando mais especificamente da arte narrativa de ouvir e contar histórias, podemos dizer que haverá à sua disposição matéria-prima suficiente para recriar outros mundos: soluções criativas para o que se propor a fazer durante a vida adulta.
Incentivo à leitura é uma das maneiras de aumentar a criatividade das crianças.
IM: A contação de histórias perdeu espaço na Era Digital? Como cativar as crianças cada vez mais conectadas?
Alexandra Pericão: Apesar do forte apelo dos smartphones e seus joguinhos, toda criança (e adulto também) gosta de ouvir uma boa história: é da natureza humana, a gente faz isso desde que se reconheceu como gente lá nos primórdios.
Mas vale um registro histórico: muito antes do boom desta tecnologia que temos hoje, Walter Beijamin, um pensador alemão que viveu entre 1892 a 1940, profetizou em sua famosa obra “O Narrador” que a figura do narrador oral de histórias acabaria por se extinguir diante de algumas circunstâncias por ele diagnosticada em sua época, dentre elas, o surgimento dos “Romances” em livros, graças à invenção da imprensa. De fato, essa figura do narrador oral foi rareando até que, em meados da década de 70, justamente como forma de reação à tecnologia então existente, sobretudo a TV, começou a surgir um movimento de narradores em vários países do mundo. Esse movimento foi crescendo, crescendo, e perdura até os dias atuais, na Era da Internet e smartphones, como preciosa forma de resistência ao imediatismo e à descartabilidade das relações.
IM: A imaginação das crianças muitas vezes surpreende, você lembra de alguma história engraçada criada por uma criança?
Alexandra Pericão: Outra vez, num festival de histórias, eu contava o “O Ganso dos Ovos de Ouro” e, nesse conto, sempre há um momento em que peço às crianças que me sugiram coisas que o camponês pode comprar com o ouro obtido. Nesse dia, um menino se empolgou e disse “batons, muitos batons!”; as outras crianças riram e, quase em coro, disseram que o camponês não era menina, portanto, batom estava fora de cogitação. Na mesma hora, fiz a voz caipira do camponês comprando aquela ideia: “sim, vou comprar batons! Sempre quis ter batons de várias cores!” e, de repente, todos pareceram entender que aquilo era possível. No final, aquele menino deu um pulo e me abraçou de um jeito tão forte, tão intenso, que tive a certeza de que as histórias podem curar feridas profundas.
IM: Qual a diferença entre o que se conta e o que se ouve. O boca a boca vai mudando as histórias?
Alexandra Pericão: Ouvir talvez seja dos verbos mais em desuso hoje em dia, daí a importância de se preservar essa tradição oral das histórias. Meus avós maternos – nem vou falar dos meus pais que já são da década de 60 e viveram toda aquela efervescência planetária – adoravam contar sobre passagens importantes e, muitas vezes, engraçadas de suas vidas. Desses relatos sempre faziam uma costura com algum conto ou lenda, que se encaixava perfeitamente ao que queriam dizer. Era delicioso ouvi-los: eles eram de Portugal e tinham morado em Moçambique (minha mãe nasceu lá), por isso narravam muitas histórias originárias daquele país. Claro que essas histórias já tinham entrado no “liquidificador” de seus próprios valores e foram repassadas pra gente com um tempero bem português. Aí entrou no meu “liquidificador pessoal” e foi se transformando em outras narrativas, ainda que eu tenha tido o cuidado de ir procurar fontes nativas – aliás, adoro Mia Couto, mas ele também tem o seu próprio “liquidificador”. Quem não tem?
Ao lado de Vini Campos, Alexandra Pericão trabalha com jovens no mundo da leitura, da criação literária e da contação de histórias.
IM: Na Oficina Jovens Autores, você também conta histórias? Como é contar histórias para um público jovem?
Alexandra Pericão: Adoro participar da oficina Jovens Autores, idealizada pelo Vinícius Campos e que foi sendo construída também com a Paty Secco [Patrícia Secco, escritora e educadora], dois grandes e queridos escritores. Entrei bem depois que a oficina já rodava por este Brasil, com a Caravana das Artes, despertando nos jovens, de forma muito especial, a vontade de escrever também. Espero ter contribuído com aquilo que talvez tenha de melhor: narrar histórias de várias culturas numa busca de trocar com eles, aumentando nossos repertórios. É incrível como eles são generosos e gostam de ouvir, justamente porque são narradas de uma forma que não estão mais acostumados, sobretudo os jovens urbanos. Pense que, muitas vezes, no corre corre do cotidiano, poucos são os pais ou avós que ainda se sentam em família para compartilhar histórias; só no período da educação infantil recebem esse estímulo e ficam depois totalmente absorvidos por uma extensa grade escolar onde isso fica esquecido. Daí você oferece uma narrativa e tem a sensação de gotinhas de água caindo num solo seco que, aos poucos, vai amolecendo, amolecendo, até se tornar fértil pra outras histórias. Só vive momentos de muito alegria contando pra esses jovens. Em Cariacica, houve um dia, em que os alunos tinham feito uma surpresa: compraram um bolo e, quando cheguei, começaram a cantar a minha música padrão de chamar histórias (dos Kaiowás) e pediram pra que eu já começasse o dia lhes repetindo uma das histórias que tinham gostado muito: eu chorei, claro. Enfim, só momentos lindos!
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