Artesão pernambucano passa pela tradição das carrancas e encontra objeto para seu talento nas obras sacras
Rock Santeiro é louco. Vive sentado em um velho pedaço de tronco, cercado por uma infinidade de retalhos de madeira que formam uma espécie de ninho. Tem ao alcance das mãos espátulas de diversos tamanhos, facas e algumas qualidades de martelo, embora sempre recorra ao mesmo, de hastes desgastadas. Ali, ele olha para um pedaço de madeira e vê São Jorge, montado em seu cavalo, vê Maria e vê Jesus.
“A natureza já dá a escultura pronta. Ela é a maior artista. Você vive em parceria com ela e só retira o que está sobrando”, explica Rock e reitera a ideia diversas vezes ao longo de uma conversa. Dava os últimos retoques no São Jorge. A madeira era moldada com tal aptidão que perdia propriedade de dureza para ganhar curvas suaves e sombras exatas.
O adjetivo louco não foi escolhido ao léu, foi preferido ao genial, pois não há um gênio sequer no mundo apoiado na sanidade. Quando surge o questionamento sobre suas faculdades mentais, as pupilas concentradas na madeira paralisam, antes de se voltarem ao interlocutor. Com olhar penetrante e enigmático, mantém a cautela na voz para responder em tom fraternal: “Eu precisava ser louco para acreditar em mim”.
No pequeno nicho com retalhos de madeira, os instrumentos que transformam tronco em arte, Rock em artista. (Foto: Celia Santos)
Roque Gomes da Costa virou Rock Santeiro quando abandonou as carrancas para se dedicar as esculturas sacras. O nome do famoso personagem interpretado por José Wilker nos anos 80 foi abraçado pelo artesão, que não deixou de moldá-lo ao seu gosto, adotando o “ck” como marca pessoal ao nome artístico.
As carrancas são elementos tradicionais do artesanato de Petrolina, em Pernambuco, e foram a porta de entrada de Rock ao mundo das artes. Nascido em Afrânio, município no extremo oeste de pernambucano, as mãos artistas trabalharam a primeira vez no cultivo da terra. Graças aos sonhos de grandeza do pai, no entanto, a família se mudou para Petrolina, às margens do São Francisco e cujo futuro já era previsto como promissor.
Incentivado pela família, passou a se dedicar mais aos estudos e foi em um trabalho escolar sobre o Rio São Francisco que encarou a primeira carranca. Entreolharam-se, obra e artista. Encontro de magnitude similar às descobertas dos grandes gênios.
Carrancas tão tradicionais em Petrolina iniciaram Rock Santeiro na arte de talhar madeira. (Foto: Celia Santos)
A carranca da ocasião era de Da Silva, artesão local que ensinou os passos iniciais ao jovem Roque e deu a ele o primeiro emprego. A tarefa de lixar esculturas foi cumprida com rigor. Seis meses depois, o aprendiz terminou a primeira carranca, com características peculiares que conferiram originalidade e admiração do mestre.
“Busquei meu próprio mundo e comecei a lapidar um artista que estava dentro de mim”, lembrou. “Existem muitos artistas no Sertão, eu me descobri. Quantos artistas têm nesses matos aí?”, questionou Rock, que hoje também se envolve em ensinar os novatos.
Dez anos dedicados às carrancas até que o escultor chegou a uma conclusão irreversível: “As carrancas estavam me tornando um artista primitivo”. Não se trata de uma negação à origem, apenas um novo encontro dentre os tantos a que os artistas estão sujeitos no processo de criação. “A carranca é a cara da cidade de Petrolina e uma cultura que tem que ser mantida sempre viva”, defendeu. Todavia, para Roque, aquela fase chegava ao fim. O final, nas trajetórias circulares, está ligado a um novo começo, no caso, um novo tronco.
Em um movimento brusco, as mãos de Rock buscam um pedaço de madeira perdido no chão. Traz à fronte, entre os olhos, e dialoga. “A escultura é algo especial que você tira de dentro e passa a admirar com os olhos. Quando alguém compra, leva um pouquinho de você. É como uma cicatriz, sempre te faz lembrar alguma coisa. A cicatriz lembra o acidente, a arte lembra o artista”, discorre em tom narrativo, quase lamurioso.
A perfeição dos traços deixa atônitos os visitantes da Oficina do Artesão, espaço que Rock divide com outros escultores do ramo. Entretanto, o artista também é passível ao erro e os equívocos de Rock fazem parte de sua filosofia de crescimento.
Madeiras que seriam queimadas ganham um novo, e grato, destino nas mãos do artesão. (Foto: Celia Santos)
“A madeira não é como a cerâmica, quando você tira não tem como repor. É como uma cirurgia, não se pode errar. Mas quando você erra, sempre se lembra para aperfeiçoar no futuro. É o mesmo também que acontece com a dignidade do ser humano. Ele erra, se culpa e melhora”, explica mais uma vez recorrendo as metáforas. “Tem que tirar só o excesso, se invadir o espaço da escultura, ela sangra”, reforça, contorcendo os músculos da face como se ele próprio tivesse sido atingido por uma espátula leviana.
A arte consome o reconhecido artesão, que hoje recusa encomendas por falta de tempo para cumprir as demandas. Senta-se no velho tronco de madeira antes das 7 horas, faz pausa para o almoço e estende o trabalho até que a luz natural do dia se despeça e ele enfim descanse.
“Essa arte depende de você, dos seus traços, eu não posso passar para outra pessoa, sou eu quem tem que fazê-la. É uma escravidão com liberdade. Você é livre para fazer o que pensa, mas a arte te manipula, exige dedicação total”, justifica.
As madeiras utilizadas na oficina são reaproveitadas. São troncos e galhos de umburana, árvore característica da caatinga. Quando uma planta morre pela seca, ganha nova vida nas mãos talentosas dos artesões.
Santeiro já esteve em diversos países mostrando suas esculturas, acumulou fãs e propostas, mas não abandona o Sertão, de tantas tradições. O artesão para na estante das carrancas. Observa. “Olha quanta coisa feia”, elogia. “Quanto mais feia melhor. A feiura causa mais impacto que a boniteza”.
Entrada da Oficina do Artesão anuncia talento. (Foto: Celia Santos)
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