Alunos dos Jovens Autores em todo Brasil ganham ferramentas que ajudam na expressão textual. | Foto: Celia Santos/Instituto Mpumalanga
“Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer” é das frases que melhor traduz nossa recorrente dificuldade de comunicar aquilo que pensamos e sentimos, não é mesmo? Ah, esse senhor Roberto Carlos acertou na mosca!
Pascal Quignard, escritor francês contemporâneo, afirma que o escritor está sempre em busca da “palavra que falta”. Mas o que é exatamente essa palavra que falta? Segundo o autor: “A mão que escreve é, antes, uma mão que escava a linguagem que falta, que tateia em direção à linguagem sobrevivente, que crispa, enerva-se, que, desde a ponta dos dedos, mendiga” 1.
Parece estranho afirmar tal coisa numa época em que todos escrevem em redes sociais, não importa a idade, a formação, o credo… Ora, todos digitam, dia e noite e sem parar, um número incontável de letras! Ainda assim, podemos falar em mãos que mendigam por palavras?
Essa é das questões que mais impulsiona meu trabalho na oficina Jovens Autores, oferecida pelo projeto Caravana das Artes. Há um ano e alguns meses, fui convidada pelos escritores Vinícius Campos (Vini, idealizador da oficina) e Patrícia Engel Secco (Paty) para integrar este projeto incrível e, desde então, tive o privilégio de viajar para vários cantos do país onde pude conviver com alunos do ensino público.
Para quem não sabe, a oficina “Jovens Autores” dura três dias (períodos integrais) e tem como um dos principais focos sensibilizar os adolescentes para a importância e a delícia da leitura, compartilhando com eles algumas trilhas possíveis para o desenvolvimento de uma escrita autoral.
Aulas despertam potenciais muito além de digitar mensagens. | Foto: Celia Santos/Instituto Mpumalanga.
A princípio, encontramos uma realidade dura de ser encarada: adolescentes que, na grande maioria das vezes, nunca leram um livro sequer. Paradoxalmente, estes mesmos adolescentes são os que têm os polegares mais ágeis de toda a evolução humana: não cessam de digitar em seus celulares, até mesmo em salas de aulas, se lhes for permitido. E o que digitam? O que estão comunicando ao mundo? O que querem, de fato, comunicar?
Quando são perguntados a esse respeito, inicialmente retraem-se. O olhar é tímido, as palavras não saem, as risadas irrompem ao mesmo tempo e alguém saca um celular para um selfie: estão adolescendo, carambola!
Até que nossos vínculos se fortalecem, a confiança vai crescendo, os risos cedem vez às trocas descontraídas de ideias e o que vamos colhendo a partir daí é surpreendente.
Diante de um papel em branco, convidados a escrever sobre seus sentimentos, o que testemunho é algo bem diferente daqueles dedinhos digitadores desenfreados: vejo canetas suspensas no ar em busca das palavras certas, das palavras tradutoras, das palavras que faltam.
Claro que a ausência de leitura é um fator relevante a ser considerado; talvez tivessem maior fluidez na escrita, talvez não (Goethe, o poeta de Weimar, levou sessenta anos para finalizar sua obra-prima “Fausto”). Entretanto, o que noto é uma sincera busca por palavras que sejam leais ao que querem dizer e, ainda, por uma forma que não só as valorizem, como também as legitimem.
Professora Alexandra Pericão com alunos de Recife. | Foto: Celia Santos/ Instituto Mpumalanga.
Desta percepção, surgiu a necessidade de compartilhar com eles algumas estruturas esqueléticas à espera de carne e sangue (as palavras). Tais recursos já vinham sendo aplicados para a concepção de contos: Vini, por exemplo, tem um jeito performático bastante divertido para motivá-los a escrever – contos lindos nasceram durante esses anos de oficina, também sob a batuta da professora Paty! –, mas uma nova trilha, complementar, acabou despontando em nossa recente oficina de Recife, oferecida a 20 alunos da rede municipal e 20 alunos da rede estadual, de 15 a 18 anos, e é sobre ela que venho falar: uma trilha circular (pequenos circuitos), propiciando mergulhos ousados em busca de definir sentimentos latentes e recorrentes em jovens dessas faixas etárias. A proposta é possibilitar que os jovens se permitam questionar a respeito do que sentem, sem nenhuma intenção de lhes oferecer um caminho “fast write”, muito pelo contrário.
Foi assim que pudemos conhecer melhor o tímido Matheus Santos Soares, 15 anos, da Escola Municipal Dom Bosco (Recife).
Solidão De quem? Minha. Como assim? Me sinto sozinho. Como sozinho. Sozinho, sem ninguém. Procure alguém! Não dá! Por quê? Não consigo. Claro que consegue! Não, pois só tenho ela. Ela quem? A solidão.
Expressão revela sentimentos e história de jovens.
Também em Salvador pudemos percorrer essas mesmas trilhas com os 32 jovens (15 a 17 anos) da escola municipal Arlete Magalhães, do bairro Castelo Branco. Havia uma grande inquietação no ar, uma necessidade de expressarem com propriedade o momento pelo qual atravessavam. Nesses três dias de oficinas, surgiram palavras que nos calaram profundamente:
Tenho medo. De quê? De ficar totalmente invisível. Como assim? Quando tenho medo, me escondo. Por quê? A sociedade não gosta de quem tem ele. Vou ficando invisível. Apagado, esquecido, aniquilado por ele. Por quem? O medo.
(António Jordan, 16 anos)
Claro que há um longo percurso a percorrer, os adolescentes também sabem disso (muito ainda por escavar!), mas estou convicta de que, uma vez despertada a necessidade de se buscar cuidadosamente essas “palavras que faltam”, rompemos a invisibilidade e o silêncio impostos a estes adolescentes que, imersos em algoritmos controlados por redes sociais, sentem-se (muitos deles) tal qual o jovem Wemerson Ferreira da Silva (17 anos):
Silêncio De uma alma que não fala. Uma alma amordaçada por uma sociedade ignorante. Como um pássaro na gaiola. Uma árvore podada e impedida de crescer. Por isso me calei. Se calou? Schiiiiiii! Silêncio!
Deixo, pois, este breve registro, já desejosa de que a oficina Jovens Autores, por meio da Caravana das Artes, possa prosseguir sua jornada por todos os cantos deste nosso país para que possamos colher ainda mais dessas palavras que tanto têm a nos dizer!
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Alexandra Pericão
Professora da Caravana das Artes. Escritora. Contadora de Histórias
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