Na penumbra silenciosa de um palco entram os personagens. Todos de preto se confundem com a escuridão. Caminham em velocidade lenta com expressões faciais serenas. Trocam olhares e nenhuma palavra. Param diante a plateia atenta e encaram o público.
São jovens que os assistem e eles não podem evitar algum desconforto em serem olhados tão profundamente por aqueles personagens ainda desconhecidos. Mas como um ato de coragem devolvem o olhar penetrante. O olhar para a arte do teatro é como observar um quadro, uma escultura ou quaisquer tipo de obra capaz de conduzir uma observação atenta e reflexiva.
O olhar silencioso e profundo para a arte do teatro. (Foto: Celia Santos)
Assim os professores da escola Pé no Palco, em Curitiba, se apresentam para uma nova turma. “Teatro coloca muita coragem e é uma arte de grupo”, explica Fátima Ortiz, arte-educadora responsável pela escola cênica da capital paranaense. A pequena encenação já mostrou aos novos alunos o quão poderosa pode ser a ferramenta da interpretação.
Teatro é tão complexo em suas virtudes, que requer à arte literária em busca de sua própria significação. Para isso um dos professores procurou definição nos versos da “Receita de acordar palavras”, de Roseana Murray. Giselle Lima narrou em tom de discurso: “para acordá-las basta um sopro em sua alma e como pássaros vão encontrar seu caminho”. A busca por um sentido também passeou por Federico García Lorca, dramaturgo espanhol conhecido por afirmar: “O teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana. Fala e grita, chora e se desespera”.
“O teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana. Fala e grita, chora e se desespera”.
Arte do autoconhecimento, praticar a interpretação também colabora para o entendimento do próprio eu e está repleta de metodologias que contribuem para uma educação mais profunda, uma vez que se pauta na afetividade e no brincar para trazer o personagem.
“Quando comecei, no final da década de 70, se discutia muito isso. São coisas que eu não consigo separar. É uma atividade altamente formativa. A gente percebe o quanto é estimulante. O teatro se debruça sobre o ser humano, emoções, visão de mundo. Você se torna um artista-pedagogo”, observa Fátima Ortiz.
O palco liberta e faz Fátima Ortiz feliz. (Foto: Celia Santos)
A educadora tem sua vida extremamente aliada ao teatro, paixão que começou aos 14 anos na escola e jamais se desvinculou de sua personalidade. A trajetória dela é uma sequencia de atos, muitas vezes sem ensaio, mas sempre com aprendizados que a libertam dos sistemas cartesianos que regem grande parte da sociedade.
“Isso me trouxe outra forma de ver a vida. Não sou aprisionada na questão do tempo, do consumo. Não separo trabalho do ócio. Sou feliz com a vida, sem a pressão de estar trabalhando”, afirma confiante e orgulhosa. Fátima revela que viver do teatro gera uma insegurança financeira, mas nada que a cause grandes perturbações, pois é a liberdade que a move. “O teatro dá uma percepção refinada da condição humana e isso leva a liberdade”, completa.
A vida indissociável da arte só se fortaleceu com o tempo. Fátima Ortiz se casou com o ator Eneias Lour e sua filha Maíra seguiu seus passos pelos palcos. Apenas o filho Daniel optou pelo caminho da informática, embora preserve o apreço pelo teatro que move a família, segundo a própria mãe.
Teatro também é uma ferramenta de ricos aprendizados, uma escola que ensina virtudes da vida. (Foto: Celia Santos)
Para a arte-educadora, o teatro funciona como uma escola de se viver. “É sair da fôrma para encontrar a forma”, afirma brincando com as palavras homógrafas. Os palcos são espaços favoráveis à reflexão humana e ao pensamento crítico. “É preciso ter espaços de contra poder, preciso ter líderes comunitários, artistas, ideologias que pensem o ser humano na sua subjetividade”.
O pensamento social vem aliado a um olhar para si, de forma quase terapêutica. “Apesar de o público de teatro ainda ser um ponto preocupante, eu vejo um crescimento no fazer teatro. Nem todos estão vendo, mas muitos estão fazendo, porque entendem que isso ajuda na vida como uma forma de autoconhecimento”.
Ortiz não esconde o semblante decepcionado ao falar do desinteresse cultural, sobretudo dos jovens imersos em um mundo globalizado que valoriza mais as tecnologias do que as relações humanas. “A arte continua ocupando espaço de evento e não de processo como teria que ser. Não sei quando isso vai mudar. A tecnologia e o consumo afastam ainda mais”, analisa. “Existem pessoas de 20 anos que nunca viram teatro”, conclui.
Fazer o teatro ganhar mais espaço entre a nova geração também é um dos esforços de Ortiz e do Pé no Palco. (Foto: Célia Santos)
Dentro do contexto nacional, a escola Pé no Palco se encontra em cenário privilegiado, em virtude da farta rede de opções teatrais em Curitiba, que só fica atrás de capitais do Sudeste, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. São 77 espaços dedicados a esta arte na capital paranaense segunda a Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura.
“Teatro não tem como competir com a televisão. Grupos tentam se fortalecer nesse espaço. Precisamos de teatro sério, de boa qualidade, poética, definição ideológica”, reforça.
A arte educa pautada no afeto, por isso é tão necessária no mundo contemporâneo, onde a afetividade se subtrai aos sistemas. O trabalho de Fátima Ortiz com o Pé no Palco visa os jovens e crianças, que passam a ter contato com um aprendizado profundo e diferente daquele encontrado nas escolas. O espaço também recebe novos atores de projetos sociais, como forma de democratizar o acesso a cultura.
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