Evaldo Pereira apresenta sua arte na Caravana e reitera importância da cultura caiçara.
Everaldo Pereira talhou um tronco de Guapuruvu ao longo de três dias, mas apesar do trabalho solitário não esteve sozinho. A pesada tora de madeira ocupava um espaço ao lado do palco na Tenda Sarau da Caravana das Artes. Dali ele observava a movimentação de crianças ou parava para uma prosa com os curiosos que se aproximavam. Apoiava o machado sob o tronco com as duas mãos na extremidade para sustentar o queixo nos momentos de descanso.
A missão de Evaldo era transformar o tronco em canoa. E o fez. Com dedicação e precisão de quem nasceu caiçara e exerce as tradições do litoral com afinco. “Comecei com dez anos, com 12 fazia canoa navegável e aos 16 já tinha feito canoa grande”, enumera o caiçara.
Aos 43, Pereira já tem muita experiência e perdeu o número de canoas produzidas. Ele é uma dos grandes representantes da cultura caiçara de São Sebastião. Aprendeu as tradições e se aperfeiçoou com tempo morando no manguezal.
Ao longo dos três dias, Evaldo transformou o tronco com a força do corpo e apenas dois machados. (Foto: Celia Santos)
“Normalmente uma canoa eu levo duas semanas trabalhando. Essa aqui não tem todos os detalhes, é mais rústica”, explica, enquanto faz um carinho de pai na madeira transformada, já com ares de jangada. “Mas olho só, com a motosserra é tchum tchum e tá pronta. Em 40 minutos está pronta”, pontuou. Mas Evaldo não quer saber de motores. Ele luta pela preservação da cultura caiçara.
“O caiçara preserva nosso litoral, a fauna, o meio ambiente. Ele planta e colhe, usa canoa ao invés de lancha”, destacou Pereira. Hoje ele é uma das fontes de informação sobre a cultura caiçara e participa de pesquisas para o reconhecimento da cultura empírica do litoral para pesquisas. O Plano Local de Desenvolvimento Sustentável prevê a participação dos Guardiões da Cultura Empírica. Evaldo Pereira é um deles.
Ao falar da própria história, Pereira vai traçando um paralelo com a história de São Sebastião. Ele sabe tudo e rapidamente pula de um assunto ao outro caindo ora na infância, ora no Brasil Colonial. “Minha família é do interior de Recife. Eu descobri que meus antepassados eram irlandeses que faziam embarcações, então eu também encontrei minha história construindo canoas”, conta em uma de suas viagens pelo tempo.
“Um surto de gripe trouxe minha família para São Sebastião. Meu pai começou a trabalhar no porto aos sete anos”, continua o caiçara, que gosta de citar Bocage, Camões e Castro Alves em sua prosa contínua. De fato, a história de Evaldo e São Sebastião se confundem. A construção do porto no Litoral Norte atraiu muitos migrantes e hoje a população é composta por pessoas que vieram de outros estados para realizar funções braçais, seja na construção civil ou na lavoura.
“Isso tudo aqui era lavoura e banana”, acrescenta esticando o braço para mostrar o bairro da Topolândia, hoje uma região periférica onde casinhas sem acabamento dividem espaço com Mata Atlântica da encosta. Boa parte dos caiçaras ocupa as comunidades pobres de São Sebastião, acuados pelo avanço da urbanização.
Evaldo passeia pela história e as tradições da cultura caiçara. (Foto: Celia Santos)
A cultura caiçara ensina meios sustentáveis de vida, onde a natureza e homem estabelecem uma relação de mutualismo, ou seja, benefícios para ambos. “A cultura caiçara é muito bonita, mas nós fomos explorados. O caiçara foi sendo empurrado para as favelas”, lamentou. “A nossa cultura é a necessidade de subsistir”, fraseou Pereira.
Chapéu de palha, roupas maltratadas, pés quase sempre descalços, fala mansa de quem vive com simplicidade, assim é o caiçara. Se precisa pescar, ele tece a rede, se precisa navegar faz sua própria canoa e pra comer nada melhor que um Azul Marinho, comida típica feita a base de peixe e banana verde. Não se surpreenda se o ver cantar, esse tipo caiçara sabe mesmo é viver.
A música a moda da viola também é parte da vida caiçara, porém chegou até Evaldo Pereira com viés de comunicação, para ser escutado. “A música começou como revolta. Mais fácil de me escutarem cantando do que falando”, pontuou, arregalando os olhos verdes que se destacam na pela queimada pelo Sol.
Com a viola, ele também mostra talento. Tudo é parte da rica cultura caiçara do Litoral Norte. (Foto: Celia Santos)
O que o caiçara quer que escutem é a o impacto da destruição do meio ambiente, não apenas na paisagem, mas no modo de ser dessa cultura litorânea. “Eu fui criado no Mangue do Areião, ele foi aterrado por causa da construção do porto e até hoje não fizeram nada”, protestou. A obra não foi concluída, mas os impactos são sentidos até hoje.
Uma pesquisa organizada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) mostrou que os manguezais da baía do Araçá, em São Sebastião, diminuíram sua área em cerca de 70% desde 1960. Os responsáveis são o acúmulo de lixo e óleo trazido pela água e sedimentos remanescentes da ampliação do porto.
O conhecimento caiçara é centenário e valioso, pois se trata de um conhecimento empírico passado com zelo pelas gerações. É motivo de orgulho, mas também de preocupação, quando vemos uma cultura ameaçada. “Hoje eu vejo casas que são destruídas. Casa de caiçara não cai porque ele entende do vento”, resume Evaldo Pereira.
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